segunda-feira, 1 de novembro de 2010

Resenha

LINS, Paulo. Cidade de Deus. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.


Paulo Lins, em seu romance Cidade de Deus, nos dá um panorama do surgimento e das transformações sociais que passou o conjunto habitacional Cidade de Deus, para onde vítimas de uma enchente no Rio de Janeiro foram removidas nos anos 60. Da pequena criminalidade dos anos 60 à situação de violência generalizada e de domínio do trafico de drogas dos anos 90.


Para escrevê-lo, usou histórias reais que viu – já que morou na favela; que ouviu – quando trabalhou como assistente da antropóloga Alba Zaluar por oito anos, sobretudo fazendo as entrevistas para a pesquisa “Crime e criminalidade nas classes populares”; e que leu – em artigos publicados em diversos jornais brasileiros.


Além da problemática evidente (criminalidade, exclusão social, etc.) destaca-se o gênero literário discursivo que entrelaça ficção, memória e história.


São inúmeros os discursos sociais da obra, que aparecem na voz de seus personagens que são reveladores, sofridos, corajosos, cheios de contrastes e contradições, como humanos que são. O inovador aqui são essas vozes: de barbárie, de vencidos, enfim a história é contada pelos seus atores.


O livro mexe em várias feridas, entre elas a constituição do espaço urbano sob o amparo da exclusão, já que não lhes foi dada alternativa social ou econômica. Fenômeno que se repete desde a abolição oficial da escravatura no Brasil.


Outro ponto cruel, é a morte de gerações inteiras agravada pelo silencio das autoridades, empresários e políticos, que no espaço-tempo fragmentado pela linguagem literária, fica evidente os efeitos da perda de identidade e da exclusão social. Ali os jovens, em sua maioria encontram na criminalidade a alternativa para ganhar dinheiro, o reconhecimento de amigos, status e ascensão social.


Assim é que o autor, usando essas vozes da favela, problematiza várias instituições da sociedade: família, polícia, escola, mídia e Estado, todas em crise.


AS PERSONAGENS – FAMÍLIA


O núcleo narrativo conta com três adolescentes, o Trio Ternura do inicio da trama e seus irmãos menores: Buscapé, que centraliza e unifica os diversos episódios em flash-back, e a dupla Bené e Dadinho que tem grande destaque no decorrer do livro.


Desde o início do livro fica clara a falta de adultos, as cenas em sua quase totalidade são dominadas por adolescentes e crianças.


Na primeira fase (o livro é dividido em três partes: Cabeleira, Bené, Zé Pequeno, cada um deles correspondendo a determinada década de 1966 à 1990), os adolescentes executam golpes pequenos; não têm idéia de matar ninguém e se isso ocorre é um imprevisto, essa marginalidade é de um momento pré-tráfico, onde a criminalidade ainda tem aquela áurea romântica, é a malandragem do morro; esse cenário será completamente modificado nas décadas seguintes.


O episódio do fim trágico dos três adolescentes e o posterior - da longa erupção do tráfico , estão ligados por Dadinho, uma criança ainda pequena que teimava em participar doa assaltos com os três amigos. Já naquela época ele se evidenciava pela intensidade de sua violência e agressividade.


Dadinho já adolescente, ou quase adulto, vai a um pai-de-santo que o rebatiza como Zé Pequeno, prometendo-lhe proteção contra inimigos se usasse um amuleto; percebendo que a “onda” é o tráfico, e não mais os assaltos ele se torna um chefão do tráfico, instaurando um reino de terror, mediado por seu melhor amigo Bené.


Bené se apaixona e pretende deixar o tráfico, em sua festa de despedida – onde vão todos os tipos de gente da Cidade de Deus, já que ele era bem visto por todos – ele é morto por acidente. Com a morte de Bené, Zé Pequeno radicaliza a violência até o final do romance.


Podemos ver o abandono das crianças – ausência de pais e adultos , famílias, como uma das causas da violência e criminalidade; esse abandono produz falhas estruturais, talvez seja por isso que Buscapé não entra no crime, tem uma família constituída com pai, mãe exercendo suas funções estruturantes. Já os demais personagens se identificam com chefes de gangues, os únicos “adultos” que lhe são próximos.


O abandono de crianças e suas conseqüências se dá em qualquer classe social, mas nas classes excluídas os pais se vêem impedidos de exercerem suas funções estruturais não por falta de comprometimento interno, mas pela situação externa tão adversa, como a violência, a miséria, o que os priva da possibilidade de darem a seus filhos os cuidados indispensáveis.


Assim, podemos ver que a exclusão social e econômica tem seus efeitos muito mais terríveis que admitimos. Essa população não esta excluída apenas dos bens culturais e de consumo, mas prejudicados no processo de constituírem-se como seres humanos.


Essa questão do livro se intensifica sempre, já que a atual cultura do consumo apregoa sucesso e prazer imediatos, criando nos não-excluídos imensas expectativas irreais, fazendo-os buscar obsessivamente essas metas e entrarem em depressão ao constatar as impossibilidades. E se isso ocorre com os não-excluídos, que dirá com os excluídos.


MÍDIA E CONSUMO – O ESPETÁCULO


A mídia causa efeitos diversos nesses atores: ora se envaidecem – ao ascender de invisível/ lixo a bandido famoso, idéia que vários deles já tinham, para “ganhar mulheres” e/ ou ser temido e respeitado na favela, ora se indignam, quando vêem (raramente lêem, já que poucos são alfabetizados) falsas noticias, o que por sua vez acaba por alimentar a violência:


Sentiu vontade de matar toda aquela gente branca que tinha televisão, carro, geladeira, comia boa comida, não morava em barraco sem água e sem privada [...] Pensou em levar tudo da brancalhada, até o liquidificador colorido e o televisor mentiroso” (p.26).


O autor, portanto, não é maniqueísta, mostra as várias facetas de suas personagens como, por exemplo, após mostrar seus crimes, narra sua história de vida, suas angústias, toda sua memória, ficando assim evidente o círculo vicioso de injustiças, miséria, violência. E todas essas histórias de vida são de abandono, desrespeito, abusos, que acabam por levar à criminalidade. Assim, são eles vitimas e praticantes de violência.


Se hoje a cidadania se afirma com a pratica do consumo, como se situam os grupos sociais excluídos que não têm acesso aos bens de consumo? “queria ser bonito, andar vestido como as cocotas, namorar aquelas meninas que andavam com eles, que pareciam felizes como os ricos” (p. 276).


Assim, o desejo de usar marcas não se limita aos “trabalhadores de bem” e ricos, chega aos cocotas - personagens que se destacam pelo modo de vestir que os aproxima das classes dominantes, chega ao espaço degradado da favela; eles vão comprar esses bens com dinheiro de assaltos e/ ou trafico , integrando-se assim ao grupo e sendo socialmente aceito quando passeia pelas praias.


“[...] as roupas de griffe estavam começando a povoar o imaginário dos miseráveis. Ao mesmo tempo sinônimo de distinção, status, identificação [...] Foi assim no inicio de um inverno rigoroso: mais de duzentos quadrilheiros caprichosamente acompanhando a moda” (p. 470).


O fato de a roupa ter se tornado uniformes, nos permite pensar no poder homogeinizador não só da moda, mas do comportamento. E é essa força produtora de consensos que o vê como o “outro”, o diferente, logo não aceito.


Os valores homogêneos passados pela classe dominante, projeta também nessas classes, seu modo de pensar, sentir e agir, contribuindo para a formação de estereótipos e preconceitos, uma vez que quem não está enquadrado nesse perfil não é aceito pela sociedade. E se, como sabemos, as classes marginalizadas não têm acesso aos bens materiais, a tensão e ódio social são acirrados.


ESTADO E POLÍCIA


Nota-se no romance a total falta de credibilidade no poder público “somente os teleguiados eram levados para a 32ª Delegacia de Polícia, porque Zé Pequeno não gastaria dinheiro com soldado fraco” (p. 492).


A criminalidade é conseqüência e sintoma dessa sociedade, assim sendo não é o efeito a ser combatido, mas antes suas causas sociais que a produzem e reproduzem. É um movimento dialético, essa violência retorna à agressão que a sociedade excludente exerce, torna-se denuncia da estrutura social que a causou. Isso tudo agravado por políticas publicas ineficientes ou inexistentes, e pelo abuso de autoridade por parte da polícia, monopólio estatal de coerção física, no sentido webberiano, ou no sentido althusseriano, aparelho repressor do Estado.


CONCLUSÃO


É possível então pensar aqui o “bandido” fora do caráter ideológico da mídia e do Estado. Ideologia essa que quando o relaciona a outros problemas sociais como desigualdade e miséria é como se fossem fantoches do econômico, apontando-o como o “outro”, ou seja, o favelado miserável, impedindo-nos e se impedindo de pensar práticas sociais associadas à violência como parte da complexa rede social de seus atores e não apenas efeito de causas atreladas ao sistema.


O livro nos toca de forma subjetiva com a pergunta que pulsa e não silencia: a responsabilidade da explosão da violência nos grandes centros urbanos. O debate não é novo, mas mexe com a “consciência tranqüila” de muita gente. E este é um dos grandes méritos do livro: mexer com as “consciências tranqüilas” de vários grupos simultaneamente.

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